Poucos contos e alguns trocados.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Per Honorem

 Escrevi esse conto há algum tempo e resolvi postá-lo aqui agora. Não tem nada de muito especial nele, mas eu gosto mesmo assim.  Procurei revisar, mas acabei só trocando alguns pronomes e deixei a linguagem mais erudita. Sempre achei que a linguagem de contos épicos devia ser mais formal.

O título antigo, que era ruim, virou esse, que significa "por amor à honra". Não é muito melhor, mas é o melhor que posso fazer.

Per Honorem


Quem sou eu? Isso importa? Eu sou o último cavaleiro. Não,  não sou cavaleiro. Sequer peão. Nem isso. Sou um bardo. Um bardo pobre e covarde, que nem sair do reino consegue. Mas o rei está diante de mim. E se impõe. Só a presença enche o salão, como um poderoso e benevolente deus.

Ele parece cansado. Pudera. Estamos em guerra. Me olha sério.

Trouxe-me sua filha. Confiou-a a mim. Um pobre bardo.

–Mas, senhor...

–Meu filho. Sabes que, para mim, o mais habilidoso dos generais e o mais simples dos camponeses têm igual importância.

–Mas não manda camponeses à guerra, com todo o respeito, Majestade.

–Quero deixar uma coisa clara: não é por tuas habilidades que te escolhi. É pelo teu caráter.

–Meu... caráter?

–Pelo que conheço de ti, teu pai te deu o que todo homem precisa: caráter. Quero que minha menina seja protegida por alguém de caráter.

A honra dela. A guerra era por causa da honra dela.

O príncipe Rodolfo, do reino vizinho, famoso por seus bacanais e sua conduta nada reta, pediu a mão da Princesa ao Rei.

O não foi o estopim da guerra.

Príncipe estúpido.

Mas há outros boatos.

–Mas, Majestade...

–Aceita, filho. É a tua oportunidade pra viajar.

Poderia eu recusar ao ver a bela princesa arrastar seu manto vermelho diante de mim?

–Sir Leon? - Ela me disse muito baixo, como um anjo. Um anjo frio.

–Eu aceito, Majestade!

Mas agora, o corpo quente e macio da princesa agarrado às minhas costas, eu começo a me arrepender. Não por ela. Mas por mim. A minha responsabilidade. Eu não sou capaz.

–Alteza - digo, ao parar o cavalo.

–Sim, Sir?

–Não sou Cavaleiro. Meu pai era apenas jardineiro. Não me chame assim, por favor.

–Não importa. Meu pai confiou no senhor. Tenho certeza que o senhor seria capaz de me ajudar - ela disse, segurando com força no meu pulso.

–Não sou - falei sem convicção.

A princesa tinha olhos grandes e penetrantes. Vai me entregar assim?, sussurrou quase, triste.

–Não.

E nem conseguiria, como soltar aquela mãozinha suave? Como separar-me do calor doce?

Eu já sabia aonde ir.


–s-s-s-s-s-s-

Meu irmão de criação ficou surpreso com a beleza incomum da minha "esposa". Deliberei que não seria bom contar que se tratava de uma princesa a ele e à mulher.

E nos recebeu.

Vivemos em paz durante algum tempo. E eu me apaixonei. Juro. Mas eu não podia sentir isso. Não podia. Precisava preservar a honra da Princesa. Ela dormia ao meu lado, como uma borboleta se debruça sobre uma flor, sem saber que um predador a espreita.

E eu a amei. Cada movimento mínimo dela, mergulhada nos sonhos, era uma tortura para mim, como se me tocasse com luxúria. Nos meus delírios, eu podia beijar aqueles lábios vermelhos. Tremia para me controlar. Meu corpo pulsava como em febre. No meio da minha solidão imensa, eu era o herói. Eu não fugia, mas matava aquele maldito príncipe do mal, o tal Rodolfo. E a minha recompensa era a mão imaculada da princesa. Mas...Eu, um pobre bardo... Como vencer o poder dum guerreiro, mesmo dum guerreiro pervertido?

Um belo dia, eu a deixei dormindo. Era muito cedo pra acordá-la. Era muito cedo para o meu irmão, lenhador, acordar. Era muito cedo para os galos cantarem. Quando voltei, ouvi vozes.Uma era da princesa.

–Finalmente eu te achei, alteza.

A outra eu não conhecia.

–Vai embora, Rodolfo.

O Príncipe Maldito!

–Só isso? Me chamas Rodolfo e eu sou um príncipe. Mas àquele bardo chamas Sir. O que ele tem que eu não tenho?

–Não é da tua conta! - ela erguia a voz.

–Mas será, assim que nos casarmos.

–Eu nunca vou me casar contigo! Estás me ouvindo? Nunca!

–Não fales assim, alteza.

–Falo como eu quiser!

De onde eu estava, dava pra ver o Rodolfo de costas e ela inteira.

–Será melhor pra todos se nos casarmos.

Ela nem o olhou.

–Tu não tens irmãos, tens? Achas que teu pai vai durar para sempre?

–Cala a boca, Rodolfo.

–Com quem pretendes te casar? Com o bardo?

– Isso não é problema teu.

–Olha para mim, Penélope - ele a erguia pelo queixo. - Sabes o que vai acontecer se vocês perderem a guerra, não sabes?

–Sei. Mas não vamos perder.

–Confiante, hein? Mas, mesmo que vencerem, achas que serei seu aliado? Vossa Alteza precisa de aliados, sabia?

–Saia.

–Um momento.

Ele parara de repente. Olhava para os lados, como se farejasse. Cachorro, não evitei pensar.



E foi a única coisa que pensei, durante longos segundos. Quando percebi, havia uma espada roçando no meu pescoço. E a princesa assustada diante de mim.

–O bardo não desgruda mesmo os olhos de Vossa Alteza, não é?

–Solta ele! - ela gritou. Tremia.

–Então... O teu povo não te importa, mas a vida suja deste bardo, sim.

–Solta ele, por tudo que é sagrado!

–Estás apaixonada por ele? - Rodolfo falava cinicamente, como se a princesa desesperada, com a mão no coração, diante dele, não tivesse a menor importância.

Penélope não conseguiu responder, os olhos tristes fixos em mim, fixos no príncipe nefando, fixos em lugar nenhum.

E eu? Eu me sentia impotente. O último dos homens, incapaz de me defender, de proteger a honra da mulher por que me apaixonei. Me debati. Ao menos não perdera a coragem.

–Quieto ou passo a faca!

–Rodolfo!

Nós dois olhamos pra ela. Havia outra faca. Estava no pescoço dela.

–Se encostares nele, EU me mato.

Senti-o hesitar.

–Não serias capaz... - ele amansara a voz.

–Vais pagar pra ver?

Ele não ia. Mas não me soltou. Ficou olhando a moça corajosa, na espera de que aquilo fosse um blefe.

–Solta ele, senão meu sangue vai jorrar. Não tenho medo de morrer.

–Casa-te comigo. Vais poupar a vida de teu povo e deste bardo.

–Não quero ouvir tuas propostas.

–Mas essa vais. Se Vossa Alteza se suicidar, matarei este bardo e continuarei na guerra, até matar seu pai e tomar o reino dele.

–E?

–Se nos casarmos, o bardo vive e eu serei seu rei sem guerra. É melhor pra todo o mundo.

Uma sombra de dor escureceu os olhos já quase negros da moça:

–Menos pra mim.

–Uma rainha tem que saber fazer certos sacrifícios pelo seu povo.

–Não o ouças, Alteza! - gritei.

–Cala a boca ou te sangro aqui já! - ordenou-me o príncipe maldito.

–Queres que eu morra, Rodolfo? - ela olhava para o chão.

Não, não, isso nunca.

–Princesa...

–Eu aceito tua proposta, Rodolfo. Solta Sir Leon.

–Larga o punhal.

–Largarei.

E o fez. Jogou a arma no chão. Ele fez o mesmo comigo.

–Boa garota.

–Agora somos noivos, certo? Quero voltar para o castelo.

–Um momento. Quem me garante que não vais armar algo para cima de mim, para não nos casarmos?

–Vais ter que acreditar na minha palavra.

–Eu não acredito. Quero uma garantia.

–Que tipo de garantia?

–Seu corpo. Quero possuí-la, alteza. Assim, não poderá me trair.

Ela se apavorou:

–Está louco, Rodolfo?!

Eu não conseguia me mexer.

–Queres que eu mate este homem?

–Não, não. Isso não.

–Então...

–Vai em frente, Rodolfo. Faz o que quiseres.

Ele se aproximou dela com fome:

–Sabia que, um dia, a teria em minhas mãos.

–Como eu posso ter certeza que não vais matar Sir Leon depois que me tiveres?

Rodolfo demorou a responder, interessado em decidir qual pedaço do belo corpo tocaria primeiro.

–Vais ter que confiar na minha palavra.

–Eu não confio. Quero uma garantia.

–Que espécie de garantia? - ele rasgava o busto do vestido vermelho devagar, com a espada.

–Não sei. Deixa-me pensar.

Eu já me erguera. Só havia uma chance. Atacar pelas costas era vergonhoso, não era? Heróis não fazem isso.













Mas eu não era um herói.

Um único golpe. Acho que o maldito sangue azul corria por uma das veias que eu acertei. E ele caiu, morto.

O quarto parecia inteiro manchado de sangue. Sangue tão vermelho quanto o meu.

–Sir Leon...

O corte no vestido mal deixava entrever o ombro dela.

–Obrigada.

–Eu agi como um covarde - reconheci.

Ela sorriu:

–Qualquer homem, na tua situação, faria o mesmo.

E me beijou.


segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

História Universal da Infâmia


Como eu postei na Metal Poderoso esses dias, "No Dia do Leitor eu nem falei nada, porque fiquei com um cadinho de vergonha de dizer que não estava lendo nada (afinal, eu faço letras, portanto já leio pra caramba o ano todo, e agora estou de férias).

Mas resolvi voltar ao livro que comecei logo depois do LOTR e não tinha conseguido acabar. Ele se chama História Universal da Infâmia, do Jorge Luis Borges"

Eu acabei o livro até que rápido (foi quinta agora, eu acho), e vou postar algumas coisas que pensei sobre ele.

O livro é bem fininho (77 páginas) e traz vários contos curtos (os menores não preenchem nem uma página), e é muito bom.

Os que mais me chamaram a atenção foram, primeiro, O Incrível Impostor Tom Castro, sobre um sujeito que se passou pelo filho morto de uma dama inglesa, graças à genialidade de Bogle, um "negro criado" australiano.

Trecho: "Bogle inventou que o dever de Orton era embarcar no primeiro vapor para a Europa e satisfazer a esperança de Lady Tichborne, declarando a ela ser seu filho." (p. 10)

Acontece que o plano genial do Bogle era mandar um sujeito que não tinha absolutamente nada a ver com o filho original! (acreditem, era genial mesmo) E o pior é que colou!

"Bogle sabia que um fac-símile perfeito do desejado Roger Charles Tichborne era de impossível obtenção. Sabia também que todas as semelhanças obtidas não fariam mais do que destacar  diferenças inevitáveis" (ib.)

Depois a mulher morre e os parentes começam a querer o couro do Orton. Bogle, obviamente, dá um jeito, só que não vou contar qual foi.

Depois, A Viúva Ching, Pirata. Basicamente, o marido dela (que era pirata) foi assassinado pelo governo chinês e ela tomou o lugar dele.

O último que vou citar é o "A Câmara das Estátuas": "Existia um forte castelo nessa cidade, cuja porta de dois batentes não era pra entrar e nem sair, mas para que a mantivessem fechada. Cada vez que morria um rei e outro rei herdava seu trono altíssimo, este acrescentava com as próprias mãos uma fechadura nova na porta" (p. 57). E o vigésimo quinto rei resolveu abrir a porta. (trilha sonora de suspense).

Esses contos, como os outros, narram histórias de gente filha da puta (não dá raiva de nenhum deles, mas tu pensa "meu, que bicho desgraçado!") que faz filhadaputices pra se dar bem na vida, basicamente.

Eu terminei o post na MP dizendo o seguinte: "O que eu mais curto no Borges é o estilo dele, que me parece meio documental, como se ele estivesse relatando uma pesquisa que fez. Já me disseram que isso realmente aconteceu, ele morava em uma biblioteca e lia muito e escreveu sobre o que leu, mas outras pessoas disseram que é tudo invenção."

Bem, fiz uma pesquisa rápida na internet e descobri que o livro de que ele diz que tirou "A Viúva Ching, Pirata" realmente existe. Dos outros eu nem fui atrás, mas acredito que existam mesmo. 

Por fim, li a relação de obras do Borges e decidi que ia ler o Seis Problemas para Don Isidro Parodi, livro policial que escreveu em conjunto com Adolfo Bioy-Casares. Se alguém quiser me dar de presente, estou aceitando.

Ps: o primeiro livro do Borges que comecei a ler (era O Aleph e digo comecei porque não tive tempo de acabar), tinha o mesmo tom historiador deste, mas tu acabava de ler cada conto e ficava com a sensação de que não tinha entendido tudo. Esse não foi assim. Acabei, entendi a história, fim de papo.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Sobre orelhas e chapéus

 Uma das expressões da língua portuguesa que mais me intriga é a "cabeça não serve só pra separar as orelhas" variante da "cabeça não é só pra segurar o chapéu".

Elas são usadas quando alguém faz alguma coisa inteligente. 

Embora a primeira faça mais sentido nos dias de hoje (quem que usa chapéu, hoje em dia? No máximo boné, e olhe lá), ela é muito mais estranha. Andei pensando no porquê.

Concluí, por fim, que, primeiro, a expressão "segurar o chapéu" não é estranha porque, embora ninguém mais use chapéu, ainda sabemos que chapéus servem para ficar em cima da cabeça.

Mas nós ainda usamos orelhas! Poisé, mas pensem comigo, caso exista alguém sem cabeça (sei lá, o Cavaleiro sem Cabeça, a Mula, sei lá), ainda existirão chapéus (e a criatura - uma vez que alguém sem cabeça não possa ser chamado de pessoa, eu acho, porque uma cabeça é uma parte constituinte necessária para se ter uma pessoa -, a criatura poderá usar chapéu em outro lugar, como segurá-lo na mão, sei lá).

Existirão chapéus mas as orelhas da criatura não existirão. Haverá orelhas, obviamente, mas o ser não poderá usá-las de maneira alguma.

Então, concluímos que a cabeça não pode servir às orelhas, mas sim o contrário, porque sem cabeça não existem orelhas.

O Cavaleiro-Sem-Cabeça pode usar chapéu, mas não tem orelhas
Ps.: Voltei a escrever bobagens.