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Eu não tinha As Mil e Uma Noites pra fotografar junto "/ |
Eu já havia começado a ler esse livro há muito tempo (pensem em bastantes anos) mas não consegui terminar. Agora, e só agora, eu tomei vergonha na cara pra continuar a leitura.
Peguei o livro na biblioteca (isso mesmo, eu praticamente não compro livros, vou até a biblioteca e pego emprestado, por motivos de: não tenho uma biblioteca imensa e sou pobre) e o devorei rapidamente (pensem em algumas horas).
Malba Tahan é, na verdade, pseudônimo de um professor de matemática brasileiro, Júlio César de Mello e Souza, grande estudioso da cultura árabe, que inclusive prefacia uma edição de As Mil e Uma Noites. Não será surpreendente, então, se eu disser que é um livro sobre um manolo que era nego velho em fazer cálculos (e não só isso, mas em tudo relacionado à matemática) e que os personagens são todos árabes (e muçulmanos).
A despeito de eu ser formada em letras, gosto muito de matemática e quaisquer coisas relacionadas ao raciocínio lógico (minha parte preferida do curso foi a linguística, a parte mais exata que se pode encontrar num curso desse tipo). Amo também o desafio (aqueles problemas que lembram quebra-cabeças, em que tu descobre uma coisa, que usa pra descobrir outra, e assim por diante, até a solução final). Sim, eu adorava física no Ensino Médio. Sim, é desnecessário dizer que não continuei a estudar esse ramo das ciências. Exatamente, eu nunca estudei cálculo.
E o que eu achei do livro?
Dá pra resumir o livro em uma pequena fórmula:
Assassinatos na Rua Morgue + As Mil e Uma Noites + didática = O Homem que Calculava
(Prevejo gente gritando: eu sou de humanas, eu sou de humanas!)
E aí alguém vai dizer: meu, o livro é tão bom assim? Bem, a verdade é que não é nenhuma obra absurdamente genial (o que daria a entender com o
Assassinatos e as
Mil e Uma Noites), mas lembra bem ambos os livros.
E por quê?
Assim como Auguste Dupin, o detetive de
Assassinatos na Rua Morgue, Beremiz Samir, o calculista, é um
gênio total. Pra vocês terem noção, o sujeito é capaz de contar as pernas e as orelhas de 257 camelos! e, ainda por cima, perceber que um dos camelos não tinha uma orelha! (na verdade, isso não é bem genialidade e sim uma capacidade absurda de observação). A genialidade se expressa em outras situações, quando, por exemplo, ele resolve enigmas propostos por 7 sábios de diferentes nacionalidades. Ou divide 35 camelos para três homens.
"(...) ele errava continuamente pela própria intensidade de suas investigações. Prejudicava sua visão por segurar os objetos perto demais. (...) A verdade não se encontra necessariamente no fundo de um poço." (Assassinatos na Rua Morgue, p. 114)
Assim como Dupin, que exalta a
simplicidade como a melhor e a
única forma de resolver boa parte dos enigmas, faz Beremiz seguindo essa ideia, resolvendo os problemas sem complicações. Um ótimo exemplo é o do sujeito que emprestou dinheiro e fez uma conta errada (porque ficou inventando moda) aí achou que tinha recebido mais do que o combinado. Quando forem ler o livro, está no capítulo 7. (Esse eu achei que ia saber resolver, caso me propusessem.)
Além disso, o calculista tem umas
manias estranhas como, por exemplo, de, mesmo sabendo que estava correndo risco de vida, continuar fazendo seus cálculos e foda-se: "A Matemática, ó Bagdali - respondeu tranquilo -, prende-nos tanto a atenção que, às vezes, alheamo-nos de todos os perigos que nos rodeiam." (p. 168)
Quem conhece o Sherlock Holmes, outro cara genial em resolver enigmas, sabe bem como ele é, principalmente no filme. No livro, ele me pareceu simplesmente um cara muito arrogante (tá, muito arrogante é pouco, ele lembra uma espécie de deus da arrogância). O Dupin, do Poe, disparado, é o mais bizarro de todos:
"Assim que os primeiros sinais da Aurora surgiam, fechávamos os postigos maciços do edifício e acendíamos alguns círios (...). Sob essa fraca luminosidade, ocupávamos nossas almas em sonhos (...) até que o relógio nos advertia da chegada da verdadeira Escuridão. Era então que saíamos às ruas, lado a lado (...)" (Assassinatos na rua Morgue, p. 94).
Nota meio nada a ver: alguém já viu um livro/filme sobre alguém absurdamente inteligente que tenha um comportamento socialmente aceitável? Lembrem-se de
The Big Bang Theory e do
Dom Quixote - que ainda vou resenhar aqui.
Outra semelhança com os dois famosos detetives é que
a narração é feita em primeira pessoa, por um amigo do personagem principal (esse sim, o gênio). O Sherlock tem Watson. Beremiz tem o "Bagdali", que se identifica assinando na dedicatória: "Ali Iezid Izz-Edim Ibn Salim Hank
Malba Tahan", ou seja, o mesmo cara identificado como o autor do livro! (Achei isso o máximo)
Outra nota: o livro traz os significados de algumas palavras que precedem o nome do Malba Tahan.
Ibn Salim Hank significa "bisneto de Salim Hank";
O narrador do
Assassinos na Rua Morgue não tem nome, embora seja, também, um grande amigo de Dupin, e inclusive participa de suas bizarrices, ao contrário do Watson, que vive chamando a atenção do Holmes para que este se comporte de uma maneira
normal.
Não podia deixar de anotar: vai que o Poe seguiu a mesma lógica do Malba Tahan, e o narrador é um pseudônimo dele mesmo?
E As Mil e Uma Noites?
Além da história se passar em Bagdá, há muitos episódios narrando
costumes muçulmanos (inclusive a história começa com "Em nome de Alá, Clemente e Misericordioso!"). Acho isso muito legal, principalmente porque o autor é estudioso da cultura árabe, e não árabe, então ele descreve costumes que um árabe não descreveria, acho, porque não têm ligação com a história.
Explico: imagine um livro escrito por um católico (um livro qualquer). Imagine que essa pessoa vá à missa toda semana, e ache que todo católico obrigatoriamente deva ir à missa todo domingo. No livro escrito por ele, não vai aparecer que o personagem tal foi à missa se não tiver acontecido nada relacionado à história do livro na descrita missa. Em "nada relacionado" quero dizer coisas como: reencontrar uma antiga namorada, cujo fim de romance se deu de forma traumática; cair um meteoro na igreja; interceptar uma horda de bárbaros de tanga gritando
fora Dilma; o padre ser abduzido; uma velha beata ser possuída por espíritos que habitaram aquele lugar anteriormente, que nunca se desprenderam dali e agora vêm sedentos de vingança, etc, etc.
Inclusive, uma das preces que um dos personagens profere é o início do Alcorão. Procurem na página 91, capítulo 12.
Os personagens, assim como no
As Mil e Uma Noites, são
identificados pela religião: um cristão, um judeu, três muçulmanos. Então, um exemplo que mencionei acima "dividiu 35 camelos por 3 homens" no livro aparece "dividiu 35 camelos por três
muçulmanos".
A Didática do livro
Só pra começar (pelo fim), há um apêndice em que se
explicam as resoluções dos problemas feitas pelo Calculista. Nesse mesmo apêndice encontramos biografias resumidas dos matemáticos mencionados na história, significados de algumas palavras árabes ou persas que aparecem no livro, bibliografia para consulta e muitas outras coisas. Muito útil e instrutivo.
Se bem que bibliografia, nesses tempos de internet, perdeu boa parte da utilidade.
A maioria dos problemas, no entanto, eu entendi suficientemente bem no enredo mesmo, e as explicações do apêndice não acrescentaram quase nada
mas eu li mesmo assim.
E eu simplesmente amei as
histórias que ele conta (lendas, episódios, anedotas) relacionadas à matemática. Destaco:
- o significado do número 7 - p. 54, capítulo 8
- a história do jogo de xadrez - capítulo 16
- a morte de Arquimedes - capítulo 24
Histórias dentro da história, como faz Sherazade.
E as mulé?
Tem um capítulo em que Beremiz recebe uma aluna (sim, uma moça) que
precisava aprender matemática pra vida dela não ser uma desgraça total (pra uma galera, aprender matemática que ia ser a desgraça rs). O pai dela tava apavorado porque já consultara um punhado de professores e só tinha ouvido cagação de regra, que mulher não tem condições de aprender matemática, escambau. O Calculista aceita dar aulas para a moça, e cita Hipátia, a grande matemática de Alexandria. A menina, chamada Telassim (talismã), recebe as aulas separada do professor por uma espécie de lençol e vigiada por duas escravas.
(spoilers, passe o mouse pra ler - acho que dá pra entender melhor se já conhecer o livro)
A moça aprende superbem a matemática, mas sua participação na história se resume a se apaixonar pelo Beremiz, casar com ele e ter três filhos. As outras mulheres são, majoritariamente, escravas (literalmente). Achei meio pobre (meio?) pra um sujeito que diz "Erram duplamente os filósofos quando julgam medir com unidades negativas a capacidade intelectual da mulher" etc etc. (O pior disso tudo é que tem gente que ainda pensa como esses filósofos) E, antes que alguém venha aqui dizer "mas ele falou..." Um parágrafo só num livro de 241 páginas que mostra o contrário e o cara acha que tá fazendo um favor? Me poupe!
No lugar dele, eu mudaria o final. O Califa oferece um presente pro Beremiz e ele pede pra casar com a Telassim. O Pai dela concorda, mas o Califa diz que só vai conceder o presente se o calculista acertar uma última pergunta.
Aí a Telassim, que estaria na plateia, disfarçada de homem (para ver o show do amado), levantaria a mão e diria "um grande sábio também precisa ser um grande professor. Eu fui discípulo desse cara e me ofereço pra responder a pergunta no lugar dele. Se eu acertar, vai estar provado que ele, além de tudo, é um puta professor." O Califa aceitava e ela acertava a pergunta. Aí ela vai ter sambado na cara dos recalcados que não quiseram ensinar matemática pra ela, e o Beremiz também, porque ia provar pra esses manolos que eles não conseguiam ensinar gurias porque eram péssimos professores.
E o final?
Querem saber o final?
Queremos saber o que tu achou do final!
Ah, sim, claro, o final. Achei péssimo. E, claro, esse tópico vai ter spoilers.
Como eu disse, o livro inteiro é pautado na religião muçulmana, relatando preces, costumes, inclusive pedindo pra Alá ter piedade dos matemáticos infiéis (não muçulmanos). Mas Talessim é cristã, e Beremiz acaba se convertendo também e "fez questão de ser batizado por um bispo que soubesse a Geometria de Euclides" (p. 240). Os parágrafos finais são os seguintes:
A verdadeira felicidade - segundo afirma Beremiz - só pode existir à sombra da religião cristã.
Louvado seja Deus! Cheios estão os Céus e a Terra da majestade de sua obra! (p. 241)
Agora eu lhes pergunto, esse final não leva o livro todo pra esse lado? O sujeito escreve um livro mostrando a cultura árabe e termina dizendo que a cristã é melhor? (A frase final é um dos salmos de Davi - que era judeu)
Já não achei muito legais outras duas passagens que denunciam que o autor era cristão, como a Telassim cantando a Carta de São Paulo aos Coríntios e uma discussão acalorada que a galera tem sobre a multiplicação dos pães e dos peixes efetuada por Jesus.
O primeiro tópico do Apêndice trata de discorrer sobre a dedicatória do livro, dizendo:
O conteúdo altamente filosófico dessa estranha Dedicatória (...) é uma das lições mais surpreendentes de simplicidade e tolerância religiosa (...) (p.245)
Realmente, ele pede piedade para os sábios não muçulmanos, pois seriam condenados a penas eternas. Acho bonito isso, de o sujeito saber que o outro vai pro "inferno" e, em vez de ficar apontando o dedo e ameaçando, pede clemência para o seu deus.
Só que, infelizmente, esse clima de tolerância perde o sentido perante o final que já falei. Para vocês terem noção, o último capítulo chama "- Segue-me - disse Jesus. - Eu sou o caminho que deves trilhar, a verdade em que deves crer, a vida que deves esperar. Eu sou o caminho sem perigo; a verdade sem erro e a vida sem morte." (p.239)
Tipo isso.
Mas, no geral, aprova o livro?
Sim. Como eu já disse, ele é divertido e instrutivo, embora simples. Além disso, tem umas ilustrações maravilhosas <3
Destaco algumas: p. 78
p. 103
p. 134
Além da moldura perfeita em todos os números de página:
O projeto de miolo e capa é creditado a Ana Sofia Mariz, cujo
site tem um monte de outros projetos feitos por ela, inclusive do próprio Malba Tahan.
Ps: vou aceitar
O Livro de Aladim e o
Amor de Beduíno, ambos do Malba Tahan, e o
A Formosa Princesa Magalona, de Rui de Oliveira, de presente de Natal <3
P.p.s.: A princesa Magalona é citada no
Dom Quixote C:
Thaís Linhares, apontada no site da Ana Sofia como a autora das ilustrações do miolo, tem um blog em que, inclusive, encontrei um
tutorial de aquarela. Desenhos maravilhosos, inclusive. E a moça ainda tem uma tag
feminismo no blog. Puro amor <3
Tenho que postar um croqui dela aqui, da princesa na cadeira de rodas. Morri de fofura
Então, é isso. Leiam, é bem divertido.