Eae, gente! Eu finalmente consegui digitar esse conto! Já faz um bom tempo que o escrevi, usando dois assuntos sobre os quais eu sempre quis discorrer: a maldição pelo assassinato de um unicórnio e um conto de terror. Não sei se ficou terrorífico que chega, mas pelo menos fala da maldição.
E, de quebra, já cumpri uma das metas para Abril, digitando o bendito.
Enfim. Ei-lo.
O preço da eternidade
Matar unicórnios dá azar. Mais do que azar, matar um
unicórnio é sinal de uma desgraça medonha e iminente. Qualquer um sabe disso.
Mas o que muitos não sabem é que essa história serve para
encobrir uma verdade terrível: há um ritual feito com sangue de unicórnio que
dá a quem o fizer a imortalidade – e plena saúde - por toda a eternidade. Mas
há um preço por tudo isso, é claro. Durante esse ritual, a pessoa perde o poder
sobre a própria alma.
É uma história terrível, e poucos malucos arriscar-se-iam
para confirmar que fosse verdadeira. Na verdade, os bardos não costumam
contá-la justamente para evitar que esses mesmos malucos se atrevam. Imaginem
os perigos que podem advir de um ser imortal sem alma zanzando pelo mundo.
Portanto, eu não ouvi essa história de um bardo. Ouvi-a há
anos, de uma bruxa, provavelmente a pessoa que conheci mais próxima dos tais
“malucos”.
Nunca contei a ninguém, mas agora recordo a velha história.
Seria uma tentação? Lanço um olhar à minha esposa, deitada na cama,
derretendo-se em febre. Ela, inconsciente, aperta minha mão e delira e geme.
Seu ventre inchado realça mais ainda sua magreza mortal. As últimas palavras
que ela disse antes de perder a consciência, há dois dias, ainda ecoam na minha
mente: se for preciso escolher entre mim e o bebê, escolham o bebê. O médico
esteve aqui e disse que, provavelmente, não haverá escolha possível.
Lembro-me da bruxa “vida e saúde eternas...”
Aperto a mão de minha mulher. Dedos finos, longos, pálidos,
sem esperança, sem vida. Preciso deles. Deles cheios de força novamente,
acariciando meus cabelos, de poder beijá-los outra vez.
Só dependia de mim.
De que me valeriam a alma imortal e o paraíso celeste sem tudo o que me
importava?
Decidi, enfim. Deixei-a aos cuidados de meus sogros e
prometi regressar com a cura. Minha sogra chorava. Seu marido bateu nas minhas
costas e me pediu para voltar logo.
Meu coração ficou mas eu parti em busca do sangue do
unicórnio que permitiria aos três sermos felizes para sempre.
-x-x-x-
Por três dias vaguei, até entrar em uma floresta estranha.
Era ela, a floresta em que encontrei o unicórnio, depois de uma semana. Ele
estava lá, exatamente como eu o imaginara. Um belíssimo e esguio cavalo branco,
com um gigantesco e pontudo chifre na testa.
Enfim, a criatura! A criatura do sangue de prata, da minha
salvação e de todos que amo.
O ritual era simples. Bastava fazer um corte vertical no
pescoço dele e colher o sangue, que finalmente nos daria a vida eterna. Rápido,
antes que a criatura escape.
Mas os meus membros estavam pesados, como acorrentados. Eu
não podia dar sequer um passo. E o bicho impávido diante de mim, como uma
tentação. Uma tentação à qual eu tinha preguiça de ceder. Não que não quisesse,
eu a desejava como um pecador à salvação, mas meus desejos estavam adormecidos,
eram apenas uma lembrança.
Quando enfim esbocei reação, uma voz desconhecida invadiu
minha mente. Seria o unicórnio? Ele não falava. Talvez um poder místico, minha
consciência ou até o próprio Deus.
“Vais matar uma criatura inocente para satisfazer teu
desejo?... Olha pra ele, nunca te fez mal...”
Não consegui replicar. Meus dedos estavam amolecidos. A voz
continuou:
“E tua alma imortal? Inocente como esta criatura... Vais
sacrificá-la também?”
A minha alma estava em um catre, em casa, repleta de nosso
filho. Eles eram minha alma, e mais nada, nem Deus, importava. Eu já havia
sacrificado a vida celeste, mesmo antes de ameaçar o unicórnio. Não retruquei,
porém. Fixei o olhar na criatura inocente diante de mim – tão inocente que seu
único pecado fora ter algo que eu desejava. Pecado, porém, suficiente para ser
condenado.
Mantive a ideia de rasgar o pescoço do bicho mas, imóvel
pela minha própria incapacidade, esperei a grave voz misteriosa tornar a me
admoestar.
Mas não. Deus – se é que era realmente Ele – cansara-Se de
mim. Qualquer coisa seria inútil.
Pensei no meu inocente filho, que ainda nem nascera, e quase
recuei ante a ideia de que seu primeiro alimento seria o sangue da criatura
sagrada. A visão me aterrorizou, os pequenos lábios manchados de rubro puro, o
choro de fome, o leite pálido que ele sorveria em seguida, de meu anjo de alma
já corrompida. Os olhos dela deixariam o bebê para olhar para mim, e seus
lábios sujos de sangue sorririam, livres e salvos, enfim.
Tive um novo sobressalto, lembrando dos longos dias de
doença dela, do sangue e da febre, do ventre crescendo e os ossos surgindo sob
a pele magra. Ela iria morrer.
Meus dedos me obedeceram, enfim. Tomei o punhal da bainha e
avancei no bicho, com violência, fúria, sede. Talvez ódio, como se meu anjo
estivesse naquele estado por causa de uma maldita criatura mágica.
E nem a voz de Deus
na minha cabeça “tolo imbecil!” me deteve.
Cravei o punhal logo abaixo da mandíbula do bicho e deslizei
em direção do ombro, num golpe só. Prata líquida esguichou e escorreu pela
minha mão, enquanto o unicórnio me lançava um último olhar humano e a voz
desfalecia em minha mente.
Sorri insano. Finalmente. Minha doce esposa e meu filho
viveriam para sempre, abençoados pela maldição do unicórnio.
Provei do sangue, após recolhê-lo num odre, e não senti
absolutamente nada de diferente. Bebi alguns goles e uma leve tontura se
apossou de mim, mas logo eu não tinha mais nada. A imortalidade era só isso?
Com o mesmo punhal, fiz um corte comprido em meu pulso. Esfreguei o sangue
prateado ali.
Quase imediatamente, ele fechou por definitivo, restando apenas
um fio metálico ali, a prova da marca.
Disfarcei o odre em minha bagagem e me preparava para
partir, quando senti uma forte ânsia de vômito. Caí de joelhos, havia algo
preso em minha garganta, que meu corpo fazia questão de expelir. Talvez o
sangue. Mas era pastoso e me impedia de respirar.
Quando enfim consegui vomitar, escorreu de minha boca um
enorme fio pastoso, que não terminava.
Fiquei ali, sofrendo, até conseguir pôr
tudo pra fora, transbordou pelos meus olhos, abriram-me cicatrizes antigas, que
passaram a sangrar prata, e até a mais recente, e eu não sabia o que fazer,
estava me desfazendo em mercúrio, ali mesmo, diante do corpo do unicórnio que se
decompunha aos poucos.
Se houvesse alguém naquela floresta, fugiria aterrorizado de
meus gritos guturais de sofrimento atroz, mas não, eu estava completamente só,
como vim ao mundo, e era assim mesmo que o ia deixar. Meu único consolo era que
morreria ao mesmo tempo em que ela o faria, minha doce esposa.
Não soube quanto tempo passou, até que acordei completamente
recuperado. Não havia cadáver nenhum diante de mim, nem sangue argênteo, só meu
odre profano. Suspirei, tomando forças pra me levantar, o que, para minha
surpresa, foi incrivelmente fácil. Senti-me leve, como há anos não me sentia. Como se houvesse nascido de novo.
Meu coração exultou de felicidade. Parti o mais rápido possível,
encontrando meu cavalo onde o havia deixado. Minha mente só tinha espaço para a
visão da minha esposa saudável, exatamente no dia em que nos conhecemos, uma
festa da aldeia, todos ao redor do fogo, ela dançando, os olhos castanhos
brilhando, os cabelos trançados até a cintura, a boca de pêssego maduro, as
ancas largas, o corpo macio.
Ela sorrira pra mim e eu decidira fazê-la a mulher da minha
vida. Para sempre.
Nosso bebê surgiu depois em meus pensamentos, pequeno e
gorducho, os olhos da mãe. Não consegui saber o sexo, mas ele roía a própria
mão, travesso. Havia leves cachinhos muito claros no topo de sua cabecinha
afável.
Minha amada, com ele no colo, sorria e lhe dizia “dá tchau
pro papai, dá”.
Parei, fulminado por um raio. Ele tinha olhos de prata!
Não consegui reagir por horas. Meu cavalo me carregou,
paciente, até a casa que sabia ser nossa. Durante esse tempo,não me abandonou a
visão de minha mulher com nosso filhinho no colo, ensinando-o a dar tchau para
o papai.
Quando enfim voltei a mim, esporeei o cavalo e parti a toda
velocidade, disposto a chegar o quanto antes.
No amanhecer do quarto dia alcancei o lar e a primeira
pessoa que vi foi meu sogro cultivando algumas flores que sua filha diligente
havia plantado embaixo de nossa janelinha.
Gritei o nome dele, que apenas ergueu os olhos, sem dar
muita atenção. Apenas abandonou o ofício quando desci do cavalo e fui até ele.
-Como ela está? – interroguei, ansioso.
-Lá dentro, descansando – respondeu misterioso.
Meu coração disparou. Então ela estava melhor? Entrei quase
correndo na casa. No nosso quarto, a maior de todas as surpresas: minha amada
estava deitada e, sobre ela, um lençol encharcado de sangue. Havia sangue no
chão, nas paredes, como se algum animal monstruoso tivesse destroçado algo ali.
Não pude me mover. Meu sogro adentrou o quarto em seguida:
não disse que ela agora descansa? Descansa para sempre.
Nosso bebê morto jazia nos braços esqueléticos da mãe.
Minha voz estava amortecida, mas eu não consegui chorar.
Nunca mais pude chorar, depois do ritual.
-Quando...? – não sei de onde tirei forças para perguntar.
O velho beijou a testa da filha, olhou demoradamente o neto
e, enfim, respondeu:
-Há três dias, quando o bebê nasceu.
Exatamente quando eu os vira dar tchau para mim!
Aquilo não podia estar acontecendo. Não... Podia...
O avô se aproximou de mim de cabeça baixa:
-Ela era linda. A mais bela das moças da aldeia. De coração
mais puro. E você... Você a enfeitiçou! Você a matou! Maldito!
E o velho atravessou meu peito com uma velha espada de
família. Eu precisava mesmo morrer.
Mas não senti quase dor. Eu não iria morrer. Nunca mais.
Ele se apavorou brevemente, mas depois deu um sorriso cheio
de sarcasmo:
-Você não vai poder se juntar a ela... Jamais.
E tirou a própria vida, diante de meus imortais olhos de
prata.
-x-x-x-x-x-x-x-
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